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COLUNISTAS / Mundurukando

Menino-quase-homem

15/10/2015

Sempre gostei de andar sozinho. Me dava preguiça andar em grupo. Eu gostava de falar com as árvores e com minha cutia de estimação. Também gostava de chupar manga no pé. Quando o final do ano ia se aproximando e as mangueiras começavam a florir, meu sorriso avançava no meu rosto. Tão logo elas amadureciam, eu corria para o quintal de casa e ia me empanturrar com elas. Levava sempre uma cuia com farinha de mandioca. Sentado num galho, eu ficava um tempão contemplando a beleza da árvore que se espalhava pelo quintal. Em seguida, apanhava a que eu achava suculenta e a devorava, tomando o cuidado de guardar o caroço, que depois transformaria em personagens para minhas brincadeiras.
Acontece que numa aldeia é difícil ficar sozinho, sozinho, sozinho. A vida comunitária é exigente. Crianças pequenas estão sempre na mira dos adultos. Não se pode sair perambulando sem cuidado. É preciso que haja um adulto que nos ensine por onde devem andar nossos passos, para onde nossos olhos devem mirar, para que lado nasce ou se põe o sol. São dicas importantes, caso um dia a gente se veja sozinho, sozinho, sozinho nesse mundo de meu deus. Também não se pode esquecer que criança não tem muito senso de direção e, de repente, pode ser atraída para um local perigoso, caminho de onças e surucucus. É muito fácil virar alimento de caçadores famintos. É bom não esquecer que se nós, humanos, precisamos caçar para comer, os animais, humanos do jeito deles, também precisam. Eu ouvi relatos dos adultos de crianças engolidas vivas por uma sucuri. Não sei se era verdade, mas que funcionava com a gente, funcionava.
Lembro que isso me aborrecia um pouco. Essa coisa de ser vigiado o tempo todo. Eu nasci meio torto, acho que porque eu não gostava da interferência de ninguém nas minhas coisas. Claro que sempre gostei de meus pais e parentes em geral, mas eu nasci com o defeito da solidão. E ainda que eu não pudesse andar sozinho, sozinho, sozinho, eu convencia minha mãe de ficar o mais distante possível, para que ela não ouvisse as minhas conversas com minha cutia e meus amigos invisíveis que eu inventava – ou será que eles é que me inventavam? – para brincar comigo. 
Nessa época, eu já era um menino-quase-homem, expressão usada por lá para dizer que eu já não era uma criancinha, mas um rapazinho que estava crescendo. Eu até usava isso contra a vigilância cerrada de minha mãe, mas ela alegava que, quando chegasse a hora de eu ficar sozinho, sozinho, sozinho de verdade, iria chamar por ela. Era, portanto, para eu aproveitar o que podia agora para não me arrepender depois.
Lembro que eu ia para a escola um pouco a contragosto, porque isso me obrigava a conviver com pessoas que eu não conhecia direito e que, às vezes, me humilhavam porque eu era da floresta. Muitas vezes, ficava alheio ao que acontecia ao meu redor simplesmente porque ficava imaginando as peripécias que eu faria quando estivesse de folga. Não poucas vezes, a professora puxou minha orelha por conta da distração. É que ela perguntava as coisas para mim e eu estava “avoando” para lugares mais gostosos. Fiquei de castigo muitas vezes por causa disso. Minha mãe foi chamada à escola tantas vezes que até já sabia o que havia acontecido. 
– Meu filho, você tem que prestar mais atenção. Escola é que nem floresta. Se você ficar desatento, a onça vem e te pega. Deixa para pensar na brincadeira na hora de brincar. Fique atento. O melhor caçador é aquele que sente o cheiro da caça quando ela está longe. Escola é lugar de aprender e os professores sabem ensinar, mas também sabem castigar.
Minha mãe era mulher sábia. Conhecia bem as outras mulheres. Segui o conselho que ela deu e nunca mais fui castigado. Tratei a escola como quem vai para a caçada: sempre atento, sempre esperto, sempre ligado. Nunca mais pensei em traquinagem na hora da aula. Depois dela eu aprontava, quase sempre sozinho, sozinho, sozinho. 
– Caçador bom tem que saber fazer silêncio – disse meu pai. 
– Silêncio tem que nascer na cabeça e não na boca. Silêncio de boca é fácil. Silêncio de pensamento difícil – disse meu avô. – É preciso prender o pensamento no alto da cabeça porque essa é a única maneira de se estar inteiro, pleno, completo em um lugar. Quando o pensamento está desgarrado, somos alvos fáceis dos outros seres que nos querem como alimento. É bom nunca esquecer disso. 
Eu nunca mais esqueci.
Quando cresci mais um pouco, comecei a ser treinado para ser um caçador, função básica para um homem viver bem em nossa aldeia. Também condição para se arranjar uma mulher para casar e ter muitos filhos com ela. Mulher não gosta de homem preguiçoso e nem de quem anda muito sozinho, sozinho, sozinho. É preciso saber viver em comunidade. A aldeia é uma grande comunidade que não pode ser desprezada, nem desprotegida.
Depois que me tornei um menino-quase-homem, descobri que não é bom viver só. A natureza não vive só. Ela tem muitas companhias e convive bem com elas. Tudo é duplo, triplo, quadruplo, múltiplo, sem deixar de ser uma unidade. Comum unidade. Comunidade.

COLUNISTAS / Daniel Munduruku

Daniel Munduruku é graduado em filosofia e doutor em Educação pela USP(Universidade de São Paulo).

Autor de premiados livros para crianças e jovens, reconhecido nacional e internacionalmente, comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República.  Reside em Lorena desde 1987; é casado com a professora Tania Mara, com quem tem três filhos.


dmunduruku@uol.com.br

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