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COLUNISTAS / Mundurukando

Linda e eu atrás da moita

20/01/2016

Quando eu tinha 11 anos, já havia superado algumas coisas da época em que entrei na escola. Foi uma superação lenta e difícil porque as pessoas continuaram a me apelidar e a me provocar reações violentas. Na cabeça delas, eu era um ser que só poderia ser alguém se abrisse mão do que eu era. Meu avô não deixara isso acontecer e me alertou para o orgulho de pertencer a um povo e ter uma ancestralidade.

No entanto, eu era um menino-quase-homem, conforme a tradição de minha gente. Isso me dava algumas prerrogativas que me permitiam lembrar que estava em plena formação para a vida adulta. Isso incluía poder flertar com as meninas da aldeia. Eram flertes que iam nos preparando para o que viria mais adiante, quando chegasse o ritual de maioridade. Eu estava sendo preparado para ser um adulto responsável, pai de família. Para isso, teria que conquistar a garota que seria minha esposa futuramente.

Tudo isso funcionava direitinho… na aldeia. Acontece que eu fui gostar de uma menina da cidade. E aí tudo se complicou. É que na escola em que eu estudava, tinha uma menina-quase-mulher que me levava à loucura. Não só a mim, é verdade, como todos os meninos da sala de aula. Todos nós vivíamos de olho no olho dela. Ela era mesmo uma belezura de garota, um verdadeiro oásis no meio de um deserto. Todos os meninos eram gamados nela. E ela se achava toda poderosa por conta disso. E era mesmo.

Lindalva era seu nome, mas gostava de ser chamada apenas de Linda. Eu suspirava por ela mais do que jamais suspirei por minha professora de português, que me havia trocado por outro. Um dia eu resolvi me declarar à Linda, conforme manda a tradição. Cheguei pertinho dela e anunciei que gostaria de conversar com ela. Linda estranhou minha ousadia. Perguntou o que eu queria, mas fui logo dizendo que não poderia ser de qualquer jeito ou em qualquer lugar. Teria que ser atrás da moita. Ela estranhou de novo, mas sua curiosidade feminina a fez aceitar o convite.

Fomos lá. Linda e eu atrás da moita. Chegando ao local, fui direto ao ponto. Estava nervoso e, por isso, disparei meu português melhorado.

– Linda, eu queria dizer que gosto de ti. Tenho te observado sempre que posso e sinto meu coração disparar quando te vejo. Espero que tenhas notado – eu disse com convicção.

Ela apenas balançou a cabeça negativamente. Fiz um gesto de aproximação e, com toda coragem, fiz a pergunta que o apaixonado faz à sua amada:

– Tu queres namorar comigo?

Lindalva ficou estupefata com minha saliência. Achou um atrevimento aquela conversa. Talvez por isso tenha sido muito cruel em suas palavras seguintes. Ela deu um passo pra trás, levantou o dedo em minha direção e me passou um sermão que revelou toda sua maldade.

– E tu achas que eu, Linda, vou namorar contigo, um índio? Índio é feio, preguiçoso, selvagem, sujo, canibal, ignorante, burro, fedido, pobre…

Ela foi dizendo palavras que eu nem entendia direito. Ela crescia diante de mim e eu ficava cada vez menor, encolhido em minha insignificância.

Não preciso dizer que aquele foi o pior dia da minha curta existência. Afinal, aquele tinha sido meu primeiro pé na bunda. Todos sabem que o primeiro a gente nunca esquece. Ele marca feito tatuagem. Fica preso na memória e nunca mais sai. E como golpe de misericórdia, Linda pediu para eu continuar amigo dela, mas exigiu que eu nunca dissesse para ninguém sobre aquela conversa, porque ela ficaria muito humilhada.

O pior de tudo é que, no dia seguinte, todo mundo na escola já sabia e meus colegas aproveitaram para ressuscitar os apelidos e as provocações que eu já havia superado. Durante muitos dias, eu desejei que a terra se abrisse aos meus pés e me engolisse para poder esquecer aquela humilhação. Foram dias perturbadores.

Nunca mais quis olhar para Linda. Eu até joguei uma praga nela. Espero que tenha funcionado. Desejei que ela ficasse feia, torta, desengonçada, vesga, manca ou explodisse depois de comer um caminhão cheio de cachorros quentes envenenados. Naquele dia, exerci meu lado mau para fazer justiça ao que eu estava vivendo. Parecia que eu tinha sido vítima de uma pessoa vil e sem sentimentos. Ainda não sabia que é muito melhor perdoar que desejar ou fazer o mal a alguém. Isso aprendi depois de muitos outros pés na bunda, de muitas experiências negativas e de algum sofrimento que a vida me ofereceu.

Hoje, me contento em pensar que Linda perdeu um cara bonitão, cabeludo, forte, inteligente, cheio de talentos, atleta, boa praça, convencido e bem humorado com a vida e com o mundo. O azar foi dela, penso eu. Ou talvez tenha sido sorte. Talvez. Quem vai saber?

COLUNISTAS / Daniel Munduruku

Daniel Munduruku é graduado em filosofia e doutor em Educação pela USP(Universidade de São Paulo).

Autor de premiados livros para crianças e jovens, reconhecido nacional e internacionalmente, comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República.  Reside em Lorena desde 1987; é casado com a professora Tania Mara, com quem tem três filhos.


dmunduruku@uol.com.br

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