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COLUNISTAS / Mundurukando

Memórias a granel – Um terremoto rasga o coração da terra

02/10/2015

Eu tinha seis anos ou menos quando a rede em que eu estava deitado começou a balançar sozinha. Comecei a chorar convulsivamente e logo minha mãe foi ao meu encontro. Por alguns minutos a casa balançou e a gente pensou que ia desmoronar.
Mamãe ficou muito assustada e nós também, porque a gente não tinha a mínima ideia do que estava acontecendo. Meus irmãos e eu ficamos escondidos embaixo da mesa por cerca de meia hora, até que tudo parecesse seguro para nós. Meu pai não estava em casa. Tinha saído para o trabalho. Ouvimos alguns gritos no lado de fora da casa e isso nos deixou com mais medo ainda. Mamãe foi espiar no lado de fora, ainda que pedíssemos a ela para não ir. Ela nos acalmou e falou que voltaria logo. Foram longos minutos de espera. Meus irmãos mais velhos tentavam me acalmar, mas meus soluços disparavam sem minha vontade.
Não demorou muito e minha mãe retornou. Ela nos acalmou, dizendo que tudo já tinha passado. Fomos saindo devagarinho, devagarinho, observando os objetos caídos, algumas trincas, panelas no chão. Abrimos a porta e olhamos lá fora. A rua estava cheia de gente assustada. Mamãe me pegou pelas mãos. No rosto das pessoas tinha medo, eu senti isso. Afinal, o que havia acontecido? Que barulho foi esse? Teria sido um objeto voador, pois todos olhavam pra cima? Ninguém sabia. Eu permanecia encolhido e grudado na mão de mamãe. Os irmãos mais velhos já começavam a circular livremente pela rua, procurando alguns estragos que era aparente: tinha árvore que ficou torta, barranco que caiu, varal de roupa que arrebentou, galhos espalhados, latido de cachorro por toda parte.
Nessa época, a gente vivia um pouco isolado dos grandes centros e por isso ficamos na curiosidade. À noite, os velhos contavam historias antigas que traziam fenômenos semelhantes: tremores de terra. Nas histórias, diziam que era a fúria dos ancestrais. Eles estavam tristes com os seres humanos e por isso faziam a terra tremer, para que as pessoas tomassem juízos. Eu ouvia tudo aquilo sempre agarrado à saia de mamãe. Estava com medo que os ancestrais quisessem me pegar por eu ter feito alguma coisa ruim. Acho que as pessoas em geral também pensavam assim, porque tão logo podiam, voltavam para casa. Não sei se iam rezar ou dormir, mas o fato é que todo mundo se recolheu mais cedo.
Quando o dia amanheceu, tudo parecia normal. A vida recomeçou e os estragos foram arrumados pela comunidade. Os comentários continuavam, mas já não tinham força. Meu pai chegou na hora do almoço. Ele veio da cidade cheio de novidades. Todo mundo se reuniu no barracão comunitário para ouvir o que ele tinha a dizer. Meu pai se sentiu. Ele era o centro das atenções e, por isso, fez uma média antes de começar a falar. As pessoas já estavam perdendo a paciência quando ele resolveu contar que o que havia acontecido se chamava terremoto e que todo mundo da cidade de Belém também tinha sentido e ficado desesperado. Alguém quis saber por que isso havia acontecido. Meu pai não sabia direito, mas afirmou que as placas do centro da Terra haviam se mexido. Muita gente riu. Meu pai também riu. Ele apenas falou que foi isso que havia ouvido por lá.
Aos poucos, a vida foi voltando ao normal. Nossa casa foi consertada por papai, que era um grande carpinteiro. Meus irmãos mais velhos o ajudaram. Eu também ajudei no que pude, mas como era o mais novo, não me deixaram atrapalhar demais. O assunto aos poucos foi sumindo, sumindo, até que ninguém mais se lembrasse dele.
Depois que cresci e me tornei adulto, a imagem de minha rede balançando sempre me acompanhou. Algumas vezes cheguei a perguntar sobre o ocorrido, mas meus pais diziam que não se lembravam disso. O interessante é que meus irmãos também não se lembram do ocorrido. Cheguei a pensar que tinha vivido um sonho naquela época. Eu também não procurei maiores explicações. Afinal, para quê ficar lembrando coisas amargas, não é? 
Uma coisa é certa, porém: eu nunca, jamais, me esqueci do dia em que um terremoto rasgou o coração da Terra… e quase me leva junto com ele.
Essa é, certamente, a lembrança mais antiga que carrego comigo. Talvez a mais violenta, talvez a mais triste, talvez a mais certa.

COLUNISTAS / Daniel Munduruku

Daniel Munduruku é graduado em filosofia e doutor em Educação pela USP(Universidade de São Paulo).

Autor de premiados livros para crianças e jovens, reconhecido nacional e internacionalmente, comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República.  Reside em Lorena desde 1987; é casado com a professora Tania Mara, com quem tem três filhos.


dmunduruku@uol.com.br

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