Reconheço o quanto ainda é difícil as pessoas se projetarem nas dificuldades do outro. Muito mais por falta de informação do que por receio, a deficiência deixa evidente as fragilidades de quem não se vê refletido no espelho das diferenças.
As redes sociais têm sido um canal importante de propagação de informações que revelam aspectos psicológicos, sociais e técnicos sobre o tema da deficiência. Alguns debates e ações também se estendem para fora das telinhas. São profissionais que dialogam sobre algum assunto que lhes proporcionam um melhor entendimento e a partilha de conhecimento; familiares que buscam compreender melhor sobre esse universo; pessoas com deficiência que trocam suas experiências e colocam suas impressões sobre a vida em geral.
Participo dessas comunidades virtuais e observo que a militância tem fortalecido alguns debates que, embora aconteçam dentro dos limites da telinha, são a expressão mais profunda dos anseios por uma sociedade mais inclusiva. Desde venda de produtos especializados, oferecimento de cursos, divulgação de materiais, tira-dúvidas, perguntas e respostas, a rede tem se preenchido de temas que se espalham aos quatro cantos. Não é uma problematização que se manifesta em guetos, mas soluções que surgem e dão voz e vez aos seus atores.
Uma postagem me chamou a atenção essa semana por trazer à tona uma realidade que também se manifesta no mundo real com bastante frequência. Talvez o estranhamento tenha acontecido por aquelas manifestações estarem tão explícitas, ao ponto dos interlocutores externarem suas angústias sem o receio de julgamentos. Afinal, todos ali estavam no mesmo barco, embora parecesse que alguns barcos estivessem à deriva e outros, ancorados em solo firme.
A postagem questionava os participantes sobre se gostariam de voltar a enxergar. Com mais de 70 comentários, foi quase unânime o desejo de recuperar a visão entre os que se declararam com baixa visão. Já entre os cegos, esse índice foi menor. Tinham também mães de crianças com deficiência visual que traziam suas angústias quanto ao futuro dos filhos cegos, sugerindo um medo generalizado a respeito dos riscos que correm aqueles que não enxergam ao se deslocarem pelas ruas, o preconceito que sofrem ao estudarem e até a tristeza por não conseguirem contemplar uma paisagem.
Para quem tem baixa visão, ficou claro que sofrem preconceito por estarem numa linha intermediária, em que ora enxergam suficiente para realizarem alguma ação, ora precisam de ajuda. A aceitação é ainda mais complexa para quem vem perdendo a capacidade de enxergar ao longo da vida. Por já terem uma experiência anterior com a visão, ainda nutrem a esperança de recuperarem a nitidez nas imagens.
Para quem já nasceu cego e nunca teve referências visuais, o desejo de enxergar vem por conta da curiosidade, embora acreditem que a adaptação seria muito complexa. Quando a cegueira acomete a pessoa adulta, a reabilitação que lhes devolve a autonomia tem dado conta de minimizar o impacto do desaparecimento das imagens. Entretanto, sentem-se mais incomodadas pela falta de estrutura inclusiva e pelas barreiras sociais do que pelas biológicas.
Entre os que desejavam voltar a enxergar, o anseio justificava-se pelas estruturas complexas e por se sentirem excluídos de quase tudo. As dificuldades provocadas por uma visão borrada ou nula lhes traziam prejuízos na participação social. Não era apenas o desejo pelas imagens, mas por uma interlocução mais equânime nas atividades do dia a dia. Não trouxeram esse desejo com alguma melancolia, embora as referências visuais tenham influenciado as experiências de muitos deles, exceto quem já nasceu cego e não tenha construído um repertório imagético próprio.
Aqueles que manifestaram o desejo de não voltar a enxergar tinham uma justificativa na ponta dos dedos. Minha resposta estava nesse grupo. Assim como eu, eles disseram que as belezas do mundo podem ser desvendadas através de outras percepções. Aprender a enxergar é tão mais complexo do que se imagina. As tecnologias são exemplo de que as barreiras físicas são superáveis. E sobre as barreiras atitudinais, elas existem em diferentes situações, não só no caso do convívio com uma pessoa cega. A comunicação é a base para uma sociedade inclusiva que só será capaz de compreender as diferenças se expostas às situações reais de convívio.
Entre os familiares, a mãe de uma criança cega disse ficar triste porque o filho não era capaz de enxergar a beleza da mesma paisagem que ela podia ver. Outra mãe manifestou o medo do filho acidentar-se em meio ao trânsito perigoso da cidade ao deslocar-se com uma bengala. Sobre a primeira mãe, talvez ela ainda não tenha compreendido os alcances e potencialidades do filho pequeno.
A chegada de uma criança com deficiência visual requer o entendimento sobre como ajudá-la a descobrir o mundo ao redor; a imitação, processo para os primeiros aprendizados, não funciona nesse caso. Ela precisa enxergar a visão como mais um recurso de apropriação e não como um sentido superior aos outros. O colorido de uma paisagem pode ser observado pelo aroma das flores, pelo frescor do vento soprando no rosto, pela maciez da grama ou pelo sabor das guloseimas de um piquenique feito debaixo da sombra de uma árvore. Correr num gramado para sentir sua extensão será sempre mais gostoso do que observar o campo à distância. Quantas belezas físicas são ofuscadas pelo egoísmo e maldade; quantos pratos aparentemente apetitosos ao olhar não agradam o paladar; quantos lares carentes de recursos materiais guardam o acolhimento invisível aos julgamentos da visão?
E assim a gente percebe que a vida se desenrola muito além de um par de olhos perfeitos. Ah, e sobre os perigos do trânsito, mesmo os que enxergam não estão livres desses percalços. Usar bengala para a locomoção não é o meu forte e, portanto, reconheço a insegurança dessas pessoas para se deixarem bengalar cidade adentro. A questão não é voltar a enxergar, é olhar através das fronteiras de uma visão perfeita e encontrar a sua imagem mais nítida em meio aos sons, sabores, aromas e texturas.
Luciane Molina é pedagoga, braillista e pessoa com deficiência visual. Possui pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e em Tecnologia, Formação de Professores e Sociedade pela Unifei (Universidade Federal de Itajubá). Sua trajetória profissional inclui trabalhos com educação inclusiva, ensino do sistema Braille, da tecnologia assistiva, do soroban e demais recursos para pessoas cegas ou com baixa visão, além de atuar desde 2006 com formação de professores. Foi vencedora do IV Prêmio Sentidos, em 2011, e do IV Ações Inclusivas, em 2014, ambos pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo (SEDPCD-SP). Também é palestrante e co-autora do livro Educação Digital: a tecnologia a favor da inclusão. Atualmente, integra a equipe técnica da Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Idoso de Caraguatatuba (SEPEDI), com ações voltadas para a comunicação inclusiva, políticas públicas para pessoas com deficiência visual e Núcleo de Apoio às Deficiências Sensoriais.
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